sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Folclore, Turismo e Mídia: tradição e modernidade


XVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE FOLCLORE

Tradições, Ritos e Cantos Brasileiros

25 a 28 de outubro de 2023

Trindade – GO

 

Tema: Folclore, Turismo e Mídia: tradição e modernidade[1]


Prof. Dr. Osvaldo Meira Trigueiro[*]

E-mail: meiratrigueiro@gmail.com

https://meiratrigueiro.blogspot.com/



Introdução

 

“O Brasil necessita de uma verdadeira política cultural para o Folclore e os seus demais bens imateriais, caso deseje preservar sua identidade nacional”

Roberto Benjamim (2004).


Quero agradecer o convite do presidente da Comissão Nacional de Folclore, professor Severino Vicente, para participar do XVIII Congresso Brasileiro de Folclore, a Izabel Signoreli, presidente da Comissão Goiana de Folclore, aos demais organizadores do congresso em Goiás e especialmente na cidade de Trindade. Aos membros desta mesa, professores Allan Rodrigues, presidente da Comissão Amazonenses de Folclore, e Hélio Pinheiro, presidente do Conselho Municipal de Turismo de Trindade.  


A sociedade midiatizada nos obriga a estudar as culturas popular/folclóricas de uma outra forma, com um olhar voltado para os movimentos das dinâmicas consumistas dos bens culturais tradicionais para atender as demandas dos negócios do mundo globalizado, nos diferentes territórios envolvidos pelos interesses políticos, econômicos, turísticos e dos espetáculos. Assim como no processo inverso: compreender como os fazedores, os portadores das culturas populares/folclore apropriam-se para o uso dos conteúdos midiáticos nas práticas cotidianas e nas suas festas tradicionais.  

Não podemos ignorar que no mundo atual as manifestações culturais populares/folclóricas são produtos de consumo cada vez mais agregadas de valores do mundo globalizado e, consequentemente, de maiores interesses para as demandas do mercado dos acontecimentos midiáticos e do turismo. São essas trocas, essas hibridizações culturais que atualizam e transformam as festas tradicionais populares/folclore em importantes acontecimentos religiosos/midiáticos e com forte influência do turismo. E nesse jogo “não há nem anjos e nem demônios, não há vitimizados e nem autores individualizados desta suposta vitimização” (PESSOA, 2018, p. 45). Na contemporaneidade o que mais importa para os estudos da folkcomunicação é compreender os diferentes processos de transformação por que passam e, com maior rapidez, as manifestações culturais tradicionais em tempo da globalização pelos meios de comunicação e suas veiculações nas diferentes plataformas digitais.    

 

Turismo Religioso

 

Turismo não é propriamente a minha área de estudo, de vez em quando entro nesse campo para melhor compreender as transformações e as ressignificações que ocorrem nas festas populares tradicionais na contemporaneidade, especialmente as peregrinações. Mas não posso deixar de considerar os 300 milhões de pessoas que viajam pelo mundo, anualmente, aos principais lugares de peregrinações ou de visitações turísticas como as Igrejas, Mesquitas, Sinagogas e a tantos outros santuários canônicos e não canônicos (Fonte: OMT – Organização Mundial de Turismo), não posso deixar de reconhecer a importância que o turismo religioso tem na economia, na cultura e na política mundial.  

Estou em constante busca para compreender as transformações e ressignificações das festas e peregrinações que vêm desde a Idade Média e chegam à Nova Idade ou Idade da Mídia. Aqui tomando emprestado o conceito de Umberto Eco (1984) para definir o que é a Nova Idade Média ou ainda para afirmar que estamos vivendo na Idade da Mídia (BERGE, 2007, p. 26). Tento compreender os novos rumos que as festas religiosas têm tomado, no sentido de atender as demandas de consumo da sociedade globalizada, observando os caminhos dos peregrinos e turistas nos lugares sagrados de pagamento de promessas, nas datas agendadas para festejar os santos e santas de suas devoções. As festas dos padroeiros e padroeiras. O meu campo de estudo e de pesquisa é nas ciências da comunicação, nas áreas específicas da recepção e mediações, da comunicação popular/alternativa e nos processos das atualizações culturais tradicionais operados pelos ativistas midiáticos da rede da folkcomunicação para atender as demandas dos interesses da sociedade contemporânea (Martin-Barbero (1997), Luiz Beltrão (1980), Roger Silverstone (1994), David Morley (1996), Osvaldo Trigueiro (2008) e dos estudos desenvolvidos pelos colegas pesquisadores da Rede Folkcom.   

Na folkcomunicação se estuda e pesquisa os canais de comunicação vinculados direta e indiretamente ao folclore e os conteúdos veiculados nos seus canais próprios (cordel, cantorias, danças, músicas etc.). E na sociedade atual os estudos da folkcomunicação também estão voltados para os protagonismos dos ativistas midiáticos nos processos de mediações, entre o local e o global, realizados nos diferentes tempos/espaços que constituem a vida cotidiana e as festas tradicionais, como as peregrinações e o turismo religioso (TRIGUEIRO, 2008, p. 47). Os ativistas midiáticos da rede da folkcomunicação não se satisfazem apenas em estar atualizados com os meios de comunicação midiáticos, vão mais além, apropriam, incorporam, readaptam, reconfiguram as suas produções culturais para as principais plataformas digitais ofertadas na internet e ganham o mundo divulgando as suas tradições culturais.  

Uma das minhas referências de estudo e pesquisa são as promessas ou ex-votos como importantes fontes de comunicação popular, que estão em constantes processos de transformação para atender as demandas das novas práticas religiosas e peregrinações. 

O ex-voto como veículo jornalístico, como fonte midiática que narra fatos, acontecimentos e que conta histórias do povo de fé (Luiz Beltrão, Câmara Cascudo, José Marques de Melo, Roberto Benjamim, Jorge Gonzáles, Júnia Martins e Osvaldo Trigueiro). É nesta perspectiva que venho investigando as festas populares tradicionais, as peregrinações, o turismo religioso e os seus diferentes processos de transformações na sociedade contemporânea.   

Não se trata de um estudo sobre religião ou de teologia em si. Mas, sobre a religiosidade popular, sobre a piedade praticada no catolicismo do povo e os novos sentidos de sociabilidades “afetados” pelos meios de comunicação, como o rádio, a televisão e as redes sociais, na reconfiguração das festas tradicionais e dos lugares de peregrinações, observando as festas populares tradicionais com o objetivo de compreender os processos de interações, de mediatizações e de midiatizações (SODRÉ, 2002), das práticas da religiosidade popular na Idade da Midia.  As estratégias de comunicação operadas pelos pagadores de promessas ou dos turistas visitantes nos lugares sagrados de peregrinações e das festas tradicionais.  

Mediatização, compreendido como processo de comunicação direto do pagador de promessa – do peregrino – com o seu santo ou santa de fé. Melhor dizendo, o agradecimento pela interseção do santo ou da santa pela graça alcançada. E midiatização no emprego das mídias para a publicização do pagamento de suas promessas, manifestadas através da tipologia dos ex-votos midiáticos depositados nas salas dos milagres, publicados nos meios de comunicação de massa ou as promessas virtuais nas redes sociais.   

O Viator na contemporaneidade

Compreender a importância do homo viator na contemporaneidade como peregrino, viajante (JORGE, 2010), como pagador de promessa ou como turista e visitante, ou seja: dos peregrinos e turistas ou ainda dos turistas e peregrinos. Até porque na sociedade contemporânea fica difícil distinguir peregrino do turista e o turista de peregrino. O ser humano é um viajante que desde a antiguidade percorre caminhos para participar das festas, das peregrinações, em determinados lugares e quase sempre em determinadas datas.  É importante dizer que as festas religiosas populares passaram e passam por transformações, mas não significa dizer que o povo deixou ou deixará de organizar, de realizar as suas festas sagradas e profanas. O que modifica são os sistemas de produção, de realização dessas festas e das peregrinações nos diferentes contextos culturais, que na contemporaneidade atendem, também, às demandas da globalização cultural. Na atualidade, é quase impossível desconectar as manifestações tradicionais da cultura popular e o folclore das novas Tecnologias da Comunicação e da Informação (CTIs). Os seus brincantes, os fazedores dessas festas, os portadores patrimoniais das tradições e das manifestações folclóricas, os peregrinos estão, também quase sempre, conectados na internet, pelo Tablet, iPad, Smartphone, no WhatsApp, no YouTube, no Blog, no Facebook e em tantas outras mídias digitais que eles operam para registrar, gravar, transmitir ao vivo os acontecimentos da vida cotidiana, das suas festas e peregrinações. Não ficam mais na dependência exclusiva da mídia tradicional ou de profissionais, quase sempre têm os domínios dos seus próprios canais nas principais plataformas virtuais. Aqui, podemos citar como exemplos a apropriação e o uso do YouTube, do WhatsApp que caíram no gosto dos mestres, das mestras e dos brincantes das culturas populares/folclore para divulgarem os seus saberes tradicionais.

A religiosidade popular, desde a antiguidade, sempre foi alimentada pela criatividade, pela espontaneidade e pelo multiculturalismo (BAUMAN, 2003), dos seus seguidores que, através dos longos anos de peregrinações rumo aos lugares sagrados, contavam as histórias de vida nas feiras, nas procissões, nos pagamentos de promessas e em tantas outras atividades da vida cotidiana, fortemente marcada com a presença da Igreja na Idade Média. Os processos de transformações das festas religiosas da piedade popular são tão antigos quanto a própria expansão do cristianismo na Península Ibérica. Não posso deixar de dizer que as redes tradicionais de comunicação, operadas por diferentes povos nos caminhos das peregrinações, tiveram e continuam tendo grande importância nas ressignificações das tradições religiosas e nos processos de transformações das culturas populares e do folclore ao longo do tempo chegando aos dias atuais.

Nos caminhos medievais para Jerusalém e Santiago de Compostela os peregrinos foram estruturando intensas redes tradicionais de comunicação – as redes mnemônicas – da transmissão oral (ZUMTHOR, 1993). Na contemporaneidade as peregrinações   rumo a esses lugares sagrados continuam como importantes territórios de observações para os estudos das culturas tradicionais/folclóricas e suas transformações. Agora, na nova Idade Média ou na Idade da Mídia, os peregrinos e turistas operam redes de comunicação estruturadas nas diferentes plataformas digitais, conectadas com o mundo globalizado, enviando e recebendo em tempo real informações sobre os roteiros de viagens aos lugares de peregrinações. Melhor dizendo, os peregrinos e turistas narram suas histórias de vigem aos lugares sagrados em tempo real e estão cada vez conectados com o mundo pelas redes sociais.

 Da Idade Média à Idade da Mídia

 Os peregrinos durante séculos, de cidade em cidade, difundiram nas feiras e nas festas, o teatro, o artesanato, as lendas, os romances de cavalarias, os mitos e tantas outras manifestações culturais que estão até hoje no imaginário das tradições populares e do folclore e com as transformações adequadas a cada lugar, narradas pelos seus intérpretes e seus produtores vêm sendo transmitidas da Idade Média e que chegam à Nova Idade Média ou à Idade da Mídia.

Até pouco tempo esses processos de transformações eram quase todos do domínio da igreja e, na atualidade, esse domínio é também compartilhado com as indústrias do entretenimento, das redes de comunicação que realizam acontecimentos midiáticos transmitidos ao vivo nos dias das grandes festas populares tradicionais (DAYAN; KATZ, 1999). Mas, mesmo com toda a influência da mídia e do turismo a cultura popular/folclore continua com fortes marcas e residualidades medievais (PONTES, 2015, p.113), ou com marcas residuais da época antiga (WILLIAMS, 1992, p. 202). Melhor dizendo, é a convivência do antigo com o novo. As batalhas entre cristãos e mouros narradas milenarmente estão, mais do que nunca, vivas e atualizadas nas produções de conteúdos midiáticos (novelas, filmes, seriados, livros etc.), mas resguardam as narrativas, as histórias contadas desde o cristianismo medieval até o cristianismo na sociedade midiatizada. São narrativas, são histórias das diversas manifestações culturais populares/folclóricas representadas pelas batalhas entre mouros e cristãos – encarnado e azul – entre o – bem e o mal – nas danças, nos folguedos, na literatura de cordel, nos contos populares, nas lendas, nos romances de cavalaria, nos pagamentos de promessas, nas expressões artísticas e artesanais que continuam compondo os repertórios do povo brasileiro nas festas sagradas e profanas (BARRETO, 1996).

 Os ex-votos como veículos de comunicação popular

Os ex-votos figurativos, representativos, discursivos, pictóricos e os midiáticos depositados nas salas dos milagres são fontes de comunicação popular, são veículo de informação jornalística e importantes objetos de estudos e pesquisas no campo da folkcomunicação. Assim como as festas e as peregrinações, os ex-votos estão em constantes processos de atualização no contexto da sociedade midiatizada, onde quase tudo pode ser um ex-voto. Agora vivemos importantes momentos das grandes mobilidades de pessoas em grandes distâncias em tempos menores, das grandes invenções tecnológicas, e das rápidas transformações culturais. Mas, ao mesmo tempo, estamos vivendo momentos do crescimento das festas religiosas e profanas, das novas peregrinações e do turismo religioso. Ou seja: do neonomadismo, do neoandarilho, do viator contemporâneo, dos peregrinos turistas ou turistas peregrinos, como sujeitos híbridos culturalmente (MAFFESOLI, 2001, BELTRÃO, 1980, CARVALHO, 2018 e JORGE, 2020, CANCLINI, 1997), que aos milhares  continuam trilhando os caminhos medievais rumo aos lugares sagrados como Jerusalém e Santiago de Compostela ou aos Santuários contemporâneos da Idade da Mídia como Nossa Senhora Aparecida (SP), Pai Eterno (GO), Nazaré(PA), Padre Cicero e São Francisco do Canindé (CE), Fátima em Portugal e não poderia deixar de citar Nossa Senhora da Penha em João Pessoa (PB) e a Cruz da Menina em Patos (PB), assim como tantos outros que são visitados anualmente por peregrinos e turistas de diferentes localidade do mundo.

 Finalizando, gostaria de dizer  

 Viajar em torno da Terra tem aumentado em progressão geométrica com os modernos meios de transporte e de telecomunicações, que aproximam as distâncias em menor tempo, com as facilidades das ofertas das viagens pelas empresas de turismo, a tendência é de crescimento do número de pessoas nos lugares sagrados (JORGE, p. 22). Na atualidade existe até a possibilidade de realizar a viagem virtual para esses lugares sagrados para fazer peregrinação e o turismo religioso sem sair de casa. O surgimento das Igrejas Eletrônicas nas redes de televisão e nas redes sociais disponíveis na internet, possibilitou as práticas das telereligiões e das teleperegrinações. Na Idade da Mídia os peregrinos podem pagar suas promessas depositando os ex-votos digitais nas telesalas dos telemilagres, ou seja: podem pagar virtualmente as suas promessas nos endereços eletrônicos dos principais santuários enviando fotos, mensagens escritas e em audiovisuais pelo WhatsApp ou fazendo depósito por PIX.

Referencias


BERGE, Crista. Tensão entre o campo religioso e midiático. In: MELO, José Marques de/GOBBI, Crista/ENDO, Ana Claudia Braun (org.). Mídia e religião na sociedade do espetáculo. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2007.
BARRETO, Luiz Antônio. Cristãos e mouros na cultura brasileira: Eu-América: uma realidade comum? Rio de Janeiro: Comissão Nacional de Folclore/IBEC/UNESCO/ Tempo Brasileiro, 1996.
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados. São Paulo: Cortez, 1980.
BENJAMIM, Roberto. Folkcomunicação na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Comissão Gaúcha de Folclore, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas hibridas: estratégia para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997.
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiro do Norte. João Pessoa/PB: Centro de Estudos Jurídicos e Sociais -CEJUS, 2018.
DAYAN, Daniel; Katz, Elihu. A história em direto: os acontecimentos mediáticos na televisão. Coimbra: Minerva, 1999.
DAVID, Morley. Televisón, audiências y estúdios culturales. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
GONZÁLES, J. Exvotos y retabalitos: Religión popular y comunicación social em México. Estudos sobre las Culturas Contemporaneas. Disponível em: http://bit.ly/2GolFKM>. Acesso em 13 mar. 2018.
JORGE, Lídia. O homo viator na contemporaneidade. In: Anais do Simpósio Teologia no Santuário de Fátima. Fátima Portugal, 2019, p 21-34.
MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
MARQUES DE MELO, José. Mídia e cultura popular: história, taxionomia e metodologia da Folkcomunicação. São Paulo: Paulus, 2008.
MARTINS, Júnia; TRIGUEIRO, Osvaldo. EX-VOTOS: documentação de fé no Santuário de Nossa Senhora da Penha. In: Se quiser falar com Deus: história e lugares dos ex-votos. OLIVEIRA, Cláudio Alves de; PRÊTRE, Clarisse (org.). - 1 ed. – Curitiba, PR: CRV, 2018.
PESSOA, Jadir de Morais. Cultura popular: gestos de ensinar e aprender. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
PONTES, Roberto. Cristalização estética como polimento na literatura e na cultura. In: Residualidade ao alcance de todos. (org.) Roberto Pontes e Elizabeth Dias Martins. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2015
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002.
SILVERSTONE, Roger. Televisión y vida cotidiana. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. Folkcomunicação e Ativismo midiático. João Pessoa: Editora da Universidade da UFPB, 2008.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. O ex-voto como veículo de comunicação popular. In: Folkcomunicação na arena global: avanços teóricos e metodológicos. SCHMIDT, Cristina (org.). São Paulo: Ductor, 2006.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 .
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das letras, 1993.


[*] Prof. Dr. Associado, aposentado do DECOM/CCTA/UFPB. Membro da INTERCOM/Rede FOLKCOM/Comissão Nacional de Folclore/Comissão Paraibana de Folclore.



[1] Texto apresentado no XVIII Congresso Brasileiro de Folclore


terça-feira, 25 de julho de 2023

A Festa do Rosário de Santa Luzia e o Cortejo do Tope do Juiz

Texto e fotos: Osvaldo Meira Trigueiro

 

Publicado originalmente na Revista Internacional de Folkcomunicação, este ensaio fotográfico, reúne registros em diferentes anos da pesquisa empírica com o objetivo de documentar e mostrar os principais momentos do cortejo do ‘Tope do Juiz” na Festa do Rosário, de São Luiza no sertão da Paraíba. Outubro é o mês de Nossa Senhora do Rosário, o mês das festas para os Reis Negros, comemoradas em quase todo o Brasil. É uma grande festa, bem caraterística do catolicismo popular, com celebrações hibridas entre o sagrado e o profano, com novenário, missa, procissão, grupos folclóricos, artesanatos, comidas típicas, parques de diversões, quermesses e muitas outras manifestações da tradicional cultura popular e do folclore.

No segundo domingo de outubro a cidade de Santa Luzia celebra a sua festa em homenagem a Nossa Senhora do Rosário. Santa Luzia fica na região do Seridó do Estado da Paraíba, com cerca de 16 mil habitantes, a uma distância de 263 quilômetros de João Pessoa, 134 de Campina Grande e apenas 42 de Patos. Tem hotel, pousada e restaurantes com comidas típicas do sertão nordestino.  

A Festa do Rosário de Santa Luzia tem o seu início com o novenário, mas acontecem no sábado e no domingo do Rosário os momentos mais importantes da festa com celebrações na igreja e nas ruas com grande participação de devotos de várias regiões. 

Sábado é o dia da feira na cidade, o grupo Pontões, grupo folclórico que sai dançando pelas ruas ao som de uma banda de Pífano, com lanças enfeitadas com fitas coloridas e na ponta um maracá que marca o ritmo das danças. O grupo acompanha o cortejo da Irmandade do Rosário recolhendo donativos e desfilando pela cidade convidando o povo para a festa.

Um dos momentos mais significativos é o “Tope do Juiz”. Por volta das onze horas da manhã do sábado o Rei, a Rainha e os demais membros da Irmandade do Rosário, que simbolizam a família real, saem em cortejo, animados pela música, dançando e sempre com a proteção do grupo dos Pontões em direção à ponte sobre o Rio Quipauá, na BR-230, na entrada da cidade, para esperar o Juiz e a Juíza da Irmandade escoltados por um grupo de cavaleiros. Nos anos de 1992, 1997 e 2007 realizei observações empíricas, etnográficas, pesquisas participativas e folkcomunicacionais, o que possibilitou documentar diferentes momentos da tradicional festa, com a participação de cerca de 200 cavaleiros, pessoas de carro, de moto, de bicicleta e até a pé no cortejo do “Tope do Juiz” da zona rural para a igreja da cidade. O Juiz e a Juíza da Irmandade, sempre saem de uma localidade da zona rural e no lugar da concentração, ou ponto de partida da comitiva, a festa é animada com músicas, aboios e loas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, tudo regado com muita bebida, tira-gosto de buchada, picado, carne-de-sol, bode guisado, farofa e tantas outras comidas típicas do sertão. O estouro de fogos de artifício anuncia a saída da comitiva rumo à cidade, é um momento de grande expectativa.  


Concentração da Cavalgada do Tope do Juiz (Zona rural de Santa Luzia/Paraíba


Saída do Tope do Juiz (Zona rural de Santa Luzia/Paraíba)
Saída do Tope do Juiz (Zona rural de Santa Luzia/Paraíba)



Acesse aqui o ensaio fotográfico completo





sábado, 8 de julho de 2023

A Festa dos Tabuleiros de Tomar: a compartilha com a família Antunes

Texto e imagens: Osvaldo Meira Trigueiro

 

Em junho de 2011, durante mais uma temporada em Portugal, a convite do casal amigo António e São Antunes, eu e Rosinha fomos a Tomar para visitar os monumentos históricos, principalmente o Convento de Cristo, as Igrejas de Santa Iria, de Santa Maria dos Olivais, São João Batista além de tantos outros monumentos históricos. Mas, ao chegar à cidade passando pelas ruas fui observando algo mais do que os famosos monumentos, eram cartazes, vitrinas de lojas ornamentadas, bandeirolas nos postes anunciando a Festa dos Tabuleiros. Então, perguntei ao casal amigo que festa era essa que estava programada para 2 a 11 de julho de 2011 e que a cidade estava quase toda envolvida na realização do grande evento. Antônio e São, foram dizendo: é a nossa maior festa que só acontece de quatro em quatro anos em homenagem ao Divino Espírito Santo. E nos convidaram para ficar na sua casa durante os festejos e de pronto aceitamos a hospitalidade dos amigos. Como a nossa base em Portugal era em Fátima, cerca de 30 quilômetros da Cidade Templária, chegamos logo cedo no dia 2 de julho no início da festa.

Tomar, também denominada de Cidade Templária, está localizada no centro de Portugal cerca de 140 quilômetros de Lisboa, 30 do Santuário de Fátima, com fácil acesso por autoestrada, trem e confortáveis linhas de ônibus.

A Festa dos Tabuleiros

Tenho andado por diferentes lugares estudando e pesquisando as festas tradicionais populares religiosas e profanas no Brasil que, por sua grandiosidade, cada uma das festas e romarias me impressionam pela quantidade de participantes, devotos ou não. Nos últimos 10 anos tenho realizado em Portugal observações de estudo e pesquisas em algumas das festas e romarias, que aqui poderia destacar como: as dos santos populares, Santo Antônio, São João e São Pedro em Lisboa, no Porto, em Gaia e no Valongo, assim com as romarias no Santuário de Fátima. Não poderia deixar de incluir nessa empreitada a grande Festa dos Tabuleiros de Tomar e estava lá em 2011, 2015 e 2019 pesquisando esse mega acontecimento popular que envolve quase toda a cidade com cerca de 20 mil habitantes e  que no período da festa ultrapassa um milhão de pessoas, vindas de quase todas as localidades de Portugal e de outros países, principalmente no domingo do grande cortejo dos tabuleiros. Este ano acontece mais uma festa de 1 a 10 de julho e desta vez não estou em Tomar presencialmente, mas acompanhando pelas redes sociais, pelos jornais online “O Templário” e “Cidade de Tomar”, as rádios “Cidade de Tomar 90.5 FM e Hertz 98.0 FM, importantes veículos de comunicação local que realizam excelentes coberturas dos acontecimentos na cidade de Tomar no período da grande festa em 2023.  

A Festa dos Tabuleiros atualmente é um mega acontecimento midiático sem, no entanto, perder a sua mística, as suas tradições que remontam às festas pré-cristãs e culto ao Divino Espírito Santo que vem desde o início do século XII e estimulada em Portugal pela Rainha Santa Isabel.    

João & Marta: no cortejo dos tabuleiros

Na festa de 20111 acampamos passo a passo o casal João e Marta ,a filha mais nova da família Antunes, que desfilaram no cortejo dos tabuleiros no grande domingo da festa. No depoimento da Marta fica demonstrado o carrinho, o afeto e a devoção ao Espírito Santo. Levar o tabuleiro é mais que uma demonstração festiva é uma atitude carregada de simbolismo de fé, como ficou registrado nesse ensaio audiovisual. A Festa dos Tabuleiros não poderia ficar de fora das ressignificações porque passam tantos acontecimentos culturais tradicionais no mundo globalizado para atender os interesses de consumo das grandes mídias e as demandas do turismo regional, nacional e internacional.  Mas a festa continua sendo para a comunidade da cidade Templária de Tomar e seus entornos uma celebração ao culto do Divino Espírito Santo, um cumprimento de promessa, para algumas pessoas, na semana de Pentecostes representada na condução do tabuleiro por uma moça acompanhada por um rapaz. João e Marta, assim com os Antunes, compartilham com famílias e amigos durante toda festa o seu bodo privado com fartura de pão, vinho e queijo, entre outras iguarias. Portanto, a festa dos Tabuleiros na família liderada por Antônio e São é uma festa de partilha, de fé e de celebração ao Divino Espírito Santo. Só tenho agradecimentos à família Antunes pela colhida na sua casa e por ter compartilhado seus conhecimentos sobre a fantástica Festa dos Tabuleiros.




















sábado, 31 de dezembro de 2022

Quando 2022 passar

vou cuidar da roseira do jardim
que deixei pra lá
vou ler o livro marcado das páginas dezenove até quarenta e sete
que deixei pra lá
vou voltar a abraçar familiares e amigos
que deixei pra lá
vou a padaria comprar o pão da tarde
que deixei pra lá
vou ver filmes no cinema na seção da tarde
que deixei pra lá
vou tomar uma taça de vinho da garrafa
que deixei pra lá
vou tomar chopp no boteco
que deixei pra lá
vou fazer a mega sena na casa lotérica
que deixei pra lá
vou apertar o botão do elevador
que deixei pra lá
vou tomar banho de mar
que deixei pra lá
vou caminhar na praia com Rosinha
que deixei pra lá
no próximo ano vou fazer tudo
ou quase tudo
que deixei pra lá
seja bem vindo dois mil e vinte três
e chegue pra cá

Feliz 2023

OMT/2022 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Radiotevê: o Rádio aos 100 anos no mundo digital

Uma das grandes revoluções da comunicação mundial foi o surgimento do rádio no início do século 20 com a histórica transmissão em 1901 entre a Europa e os Estados Unidos. Nos anos 30 do século passado o rádio já era um importante veículo de propaganda política usado pelo Presidente dos Estados Unidos Franklin Roosevelt, por Hitler na Alemanha e por tantos outros. Nos anos 40 e 50 do mesmo século o rádio consolidava-se como importante veículo de comunicação em várias partes do mundo.

A primeira experiência de transmissão radiofônica no Brasil, oficialmente, ocorreu em 1922, nas comemorações do centenário da independência com o pronunciamento do então Presidente Epitácio Pessoa. E hoje, se celebra o bicentenário tendo a cobertura do rádio na era digital.

Mas o professor Moacir Barbosa, da Universidade Federal da Paraíba, importante estudioso desse veículo no Brasil, sempre afirmava que a data da primeira transmissão radiofônica no Brasil, teria sido no Recife em 1919, que originou a Rádio Clube de Pernambuco. “Como se tratou de uma atividade mais tecnológica, os louros foram endereçados para as transmissões das solenidades do centenário da independência, com a aquisição de dois transmissores (tecnologicamente, portanto, o rádio já consolidado) e depois para Roquette Pinto. A diferença está aí: a experiência de Recife foi técnica, enquanto a do centenário foi de broadcast (com uma programação definida). Creio que isso não tira o mérito dos pernambucanos, pois se assim for, a transmissão intercontinental de um tiro de fuzil feito por Marconi (técnica, apenas), não poderia ser considerada a primeira transmissão de rádio. Mas é esse o papel deste importante meio de comunicação, polêmico até nas suas origens” (BARBOSA, 2012).

O Brasil entra, verdadeiramente, na Era do Rádio no período do Estado Novo que vai de 1937 a 1945 quando Getúlio Vargas cria o Departamento de Imprensa e Propaganda-DIP. Até meados da década de 1960 o rádio viveu o período denominado da Era de Ouro e a partir daí, com o surgimento da televisão é anunciada a morte do rádio para esse novo veículo de comunicação que tinha som e imagem e o rádio seria passado para trás, diziam que não haveria mais espaço para ele.

O rádio recebeu anúncio de morte em diferentes épocas da sua história, sempre sobreviveu e agora está mais vivo do que nunca. Com o surgimento da televisão a Era de Ouro do Rádio passou a ser a era da TV e mais uma vez a morte foi anunciada como quadro irreversível. Era a sua morte cerebral, a sua morte tecnológica, os conteúdos e os profissionais seriam transferidos para o novo veículo de comunicação que empolgava o Brasil. Os anos se passaram e mais uma vez o rádio saiu da UTI.

A chegada da internet populariza ainda mais a televisão, melhor dizendo, a TV digital, a TV móvel se espalha em quase todas as camadas sociais e volta a polêmica sobre a morte do rádio. E o rádio se transforma drasticamente, dá o troco, incorpora as novas tecnologias de comunicação, renova os conteúdos e ressurge como um veículo de comunicação para atender as exigências do mercado de consumo emergente no país e ocupa espaços utilizando outras mídias como telefone celular, smartphones, tablets e outros dispositivos móveis, além da TV.

Ao contrário da visão pessimista de alguns, o que estamos assistindo na atualidade é o surgimento de uma nova Era do Rádio onde as convergências de tecnologias e abrangências de conteúdos transformam o rádio em um veículo também com imagem. Ou seja: “radiotevê”. Melhor dizendo, se nos anos 50 e 60 do século 20 tivemos o aparecimento da “tevêradio”, hoje temos o “radiotevê”, possibilitado por diferentes suportes tecnológicos e permanecendo com toda força na era da imagem e do som digital.

O rádio não só se escuta, também se pode ver, inclusive o nosso programa preferido, em qualquer parte do mundo. É o rádio híbrido com som e imagem navegando na internet e tantos outros suportes midiáticos. O rádio criou novas linguagens para atender os diferentes segmentos da sociedade independente de idade, gênero, classe econômica e cultural.

Não se justifica mais que o apresentador do programa de rádio diga: pena que não seja TV para o ouvinte ver isso ou aquilo. No “radiotevê” a audiência não é mais só de ouvintes, é ao mesmo tempo de ouvintes e telespectadores. Isto é, os constituintes da recepção dos programas radiofônicos não são mais só ouvintes, agora são “teleouvintes”, e realmente é um novo prazer, uma redescoberta ouvir e ver esse rádio que se espalha mundo a fora. O “radiotevê” prolifera nas diferentes redes para atender a sociedade midiatizada e está cada vez mais ao alcance dos ouvintes.

O “radiotevê”, na sociedade atual continua a ser um importante veículo de comunicação porque está ao alcance das diferentes localidades e das diferentes classes sociais desse imenso país.   Portanto, em 2022 o rádio mais forte do que nunca completa 100 anos de vida no Brasil.
Nem Roquete Pinto imaginaria tanto. Agora posso ouvir a Rádio Espinharas de Patos, cidade do sertão da  Paraíba, tanto aqui em João Pessoa como em Portugal, Japão ou na China.

 Dedico este texto ao professor e amigo Moaçir Barbosa (in memória) 


terça-feira, 3 de maio de 2022

Luiz Beltrão: os caminhos cruzados da folkcomunicação e a Missão Mário de Andrade de 1938 na Paraíba

Este artigo, publicado na Revista Estação Folclore, da Comissão Sul-Matogrossense de Folclore, tem como objetivo fazer uma análise, mesmo que exploratória, da importância que foi a Missão Mário de Andrade de 1938 nos estados da Paraíba e Pernambuco para Luiz Beltrão formular a Teoria da Folkcomunicação.

Os caminhos cruzados de Luiz Beltrão e Luiz Saia foram encontros fundamentais nos estudos iniciais sobre os ex-votos ancorados em Alceu Maynard Araújo e Luiz da Câmara Cascudo. Como referência as citações sobre a importância do cruzeiro de acontecido e a capelinha da Cruz da Menina na cidade de Patos na Paraíba visitada por Saia em 1938 e Luiz Beltrão em 1976. 

Como nasci em Patos, a história da Cruz da Menina sempre fez parte do meu imaginário religioso e cultural desde a infância aos dias atuais. Eram frequentes, na casa dos meus pais e da minha avó materna, as narrativas das histórias de curas das mais diferentes doenças, dos mais variados desejos alcançados por parentes, conhecidos e até de romeiros de fora da freguesia. São incontáveis os fatos narrados através dos ex-votos depositados na sala dos milagres na Cruz da Menina.


Acesse a Revista Estação Folclore e leia o artigo completo. 

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Cramol: canto de mulheres portuguesas

As freiras cantam no coro,
As cachopas ao serão
Cantam as moças e velhas
Na noite de São João
(Cancioneiro de São João, Évora\Portugal)

 

Reencontrei a professora portuguesa Zé Justino, que é nossa parceira de investigação na Rede Folkcom – Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação, em 2012 na cidade de Campina Grande no Estado da Paraíba-Brasil, onde no mês de junho é realizada uma das maiores festas de São João do Brasil. O nosso encontro foi na XV Conferência Brasileira de Folkcomunicação e no IX Seminário: Os Festejos Juninos no Contexto da Folkcomunicação e da Cultura Popular, um evento científico cultural promovido pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Zé Justino é professora na Escola Superior de Comunicação Social e investigadora no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. A investigadora portuguesa nos últimos anos tem contribuído para o desenvolvimento de estudos e intercâmbios com a Rede Folkcom sobre patrimônio cultural, literatura e folclore português no contexto da folkcomunicação.

Nesse seminário chamou muita atenção porque trazia novos conhecimentos sobre os festejos juninos em Portugal e quase tudo era novidade para a plateia constituída na sua maioria de professores, investigadores e estudantes da área do conhecimento da comunicação social, da folkcomunicação e das manifestações culturais tradicionais e do folclore no contexto da sociedade midiatizada.  A sua intervenção teve como tema principal: São João Batista na música tradicional portuguesa: São João na tradição popular portuguesa, em geral, e na música tradicional, em particular. Exemplos de usos de temas relacionados com São João, quer em comunidades rurais, quer urbanas, quer rurbanas [grifo nosso]”

A professora Zé Justino, relata as suas experiências como pesquisadora e ativista cultural com exemplos demonstrativos da importância das festas, das romarias, dos cancioneiros tradicionais portugueses e de tantas outras manifestações culturais populares e folclóricas que estão em plena atividade na sociedade contemporânea em constantes processos de modernização do rural ao urbano e até ao rurbano como é citado na ementa do trabalho apresentado. A professora Zé Justino usa o neologismo rurbano – criado pelo sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre – para definir socioculturalmente os habitantes das pequenas cidades e aldeias que são conceituadas como urbanas, mas na realidade continuam mantendo suas características de comunidades rurais economicamente e socioculturalmente. No Brasil a maioria das cidades tem menos de 50 mil habitantes e estão conectadas ao mundo globalizado pela comunicação social e pelas redes online, mas continuam mantendo o seu patrimônio cultural tradicional e folclórico em permanente processo de modernização. Os estudos de Zé Justino em Portugal estão em perfeita sintonia com o que estamos realizando na Rede Folkcom no Brasil.

 Na parte final do seu trabalho apresentado na conferência e no seminário da Rede Folkcom, a professora encanta a todos nós com o relato das suas experiências como investigadora, ativista cultural e participante do Cramol, um coral formado por mulheres que se dedica na divulgação das músicas e cantos tradicionais portugueses.

Zé Justino, na sua intervenção, mostrou que as tradições culturais e folclóricas de celebrações dos festejos juninos – para os Santos Populares – também são fortes em quase todas as regiões de Portugal e, finalizando a apresentação, narra a sua experiência com o coral Cramol exibindo um vídeo do grupo cantando as músicas tradicionais de São João em Portugal. 

A importância do coral Cramol em Portugal

Nos seus mais de 40 anos de atividade divulgando a música popular tradicional portuguesa, o Cramol é um testemunho da importância da criação cultural e estética do mundo rural vivido por mulheres nas horas do trabalho, do sagrado e da festa. O Cramol, foi fundado em 1979 por sugestão do maestro Domingos de Morais, com o objetivo de dar maior visibilidade ao canto tradicional e à sonoridade ancestral dessas manifestações culturais, que representam uma das inúmeras riquezas do patrimônio musical e do canto português.

O Cramol, uma organização autônoma, é constituído por cerca de 20 mulheres e é vinculado à Biblioteca Operária Oeirense (BOO), localizada no município de Oeiras, na área metropolitana de Lisboa. O grupo teve como diretor artístico o maestro Rui Vaz, que foi sucedido pelo maestro Luís Pedro Faro e desde 2003 tem a direção artística do maestro Eduardo Paes Mamede. O grupo Cramol já fez inúmeras apresentações em diferentes regiões de Portugal e em outros países da Europa, além de realizarem conferências, seminários, oficinas e cursos sobre o patrimônio cultural do cancioneiro popular português.  

O que caracteriza o grupo Cramol é a diversidade do seu repertório constituído de músicas e cantos interpretados por vozes de mulheres tendo como base as pesquisas dos etnomusicólogos Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, que por longos anos recolheram músicas, cantos e literatura oral populares tradicionais portugueses. 

Em 2019, o Cramol celebrou os 40 anos de existência com uma série de espetáculos, conferências em igrejas, museus, escolas e na BOO. Duas das fundadoras do grupo, Margarida Silva e Teresa Rebelo, em evento promovido pelo CCIF-Centro de Cultura e Intervenção Feminista e pela UMAR – União de Mulheres Alternativas, assim definem o grupo:

O Cramol dedica-se ao canto tradicional de mulheres por ser, em si mesmo, um testemunho de um património único, de cultura e criação estética das mulheres rurais. Fundámos o Cramol para preservar essa riqueza. Para mostrar o valor intrínseco da voz, do canto que as mulheres nesses territórios criaram, produziram. Essa fala de mulheres, uma forma de dizer e transmitir saber, um saber assente na afirmação do sentido da terra, da dureza do trabalho, da expressão da vida e do espírito de comunidade. Criámos o Cramol para dar a conhecer como o canto de mulheres foi, (é?) um instrumento da construção de si mesmas, das comunidades da sua pertença e presença evidenciando o seu poder de ser ator como mulheres. Para revelar como o canto, essa fala de mulheres, é modo de se transcender como tal e persistir, dando visibilidade a uma existência quotidiana de autonomia e liberdade.

E continuam:

Como dissemos, nós, as mulheres que fazem o Cramol, cantamos o que herdámos, o nosso património comum, especificamente no que respeita ao legado deixado pelas mulheres. Um canto que nasce da terra e de quem a revolve, a habita e trabalha. E dela muito espera, consoante o tempo. E desta experiencia vivida na carne nasceu o canto, melhor dizendo, os muitos cantos que povoam o corpo, o pensamento, desejos e falas das mulheres. A memória dessas sonoridades interroga as circunstâncias existenciais, sociais e culturais de hoje abrindo novas possibilidades performativas e de sentido às falas no feminino. A voz e o corpo e as memórias que habitam o canto, enquanto totalidade que liberta, invoca diversas dimensões da experiência humana que importa explorar e debater.

O Cramol encanta cantando por onde passa, contando a história de vida dessas mulheres trabalhadeiras e pela música narra os seus hábitos, seus costumes, seus sentimentos e suas crenças. O grupo interpreta a vida dessas mulheres, que como muitas outras,  têm os seus momentos de alegrias e tristezas, de suas lutas e aflições, de amores e desamores e tudo isso sem apelar para o lado apenas lúdico e pitoresco ou do espetáculo dramático de lamentações como uma diversão “para turista ver”. Muito pelo contrário,  o Cramol canta a vida de mulheres que herdaram dos seus antepassados o patrimônio cultural e continuam contando histórias que são removidas das raízes rurais para os espaços de sociabilidade urbanos ou rurbanos na contemporaneidade.    

Veja aqui mais um vídeo do Cramol.